AS ARTES TÊM O PODER, EM QUALQUER cultura ou era humana, de cristalizar uma ou mais essências do seu artista para muito além de sua vida. Tal propriedade tende a acontecer especialmente com as grandes obras artísticas produzidas ao longo da História e que conseguiram, para o bel-prazer e desfrute da posteridade, sobre-existir tanto ao rigoroso teste do tempo quanto ao revoltante teste dos bárbaros. E é por esta mediação geracional — e, de acordo com a sua magnitude, até civilizacional —, conduzida pelas artes retidas nas culturas, que podem ser comunicadas as impressões expressas em memoráveis desenhos, esculturas, gestos, textos, sons produzidos pelos grandes artistas e sobre os mais variados dramas, fenômenos e acontecimentos que nos acometeram no passado, que muito testemunhamos ainda no presente, e que, com derradeira expectativa de repetição, recorrerão no futuro.
E este é o efeito mágico de imortalização que uma grande personalidade artística — mesmo que se trate de um anônimo — está perenemente sujeita por suas grandes obras produzidas, especialmente pelas artes. Além disso, quando os artistas se inspiram em alguém para desenvolver suas obras, ele acaba estendendo a sua capacidade de imortalização de si ao outro que ele cita ou referencia. Este poder é uma dádiva destinada aos grandes e que pode até, pela ação de Saturno, ser olvidada, soterrada, perdida, destruída mas que basta ser lembrada, desenterrada, achada, restaurada por qualquer um, em qualquer lugar, mesmo que ocorra décadas, séculos, milênios após sua criação que, com isso, rapidamente se rememora e ressuscita seu autor de eras atrás, que, assim, ressurge, remarca, volta à vida entre as pessoas deste outro tempo futuro, ao retornar flamejando como uma Phoenix à devida atenção merecida de um grande público que jazia boicotado e mutilado de mais um artefato do que havia de melhor, belíssimo, boníssimo já produzido.
Foi o que, no século XIII, São Tomás de Aquino (1225-1274) fez com Aristóteles (c.428 a.C.-c.348 a.C.), que havia desvanecido do conhecimento das pessoas na Europa desde o raiar da Era Cristã e que, desta redivulgação medieval de sua obra filosófica, ressurge quase dez séculos depois para não desaparecer jamais e ainda marcar o mundo inteiro com sua grandeza. Ou, saindo dos ditosos textos e indo aos belos sons, posso citar também como fenômeno de resiliência artística o que ocorreu com o compositor, cravista, organista, violista, violinista alemão, Johann Sebastian Bach (1685-1750), que morreu relativamente desconhecido como mestre de coro da Igreja de São Tomás da cidadezinha de Leipzig, na Alemanha, mas que, cerca de um século após sua morte, retorna por sua vasta e bela obra musical, tal qual uma brasa volta a se incendiar e, por esta imagem, a aquecer os corações do mundo e não mais sair; tudo pelas mãos talentosas do maestro, compositor e musicista alemão, Felix Mendelssohn (1809-1847).
E é por esta dádiva que muito abençoa os artistas, que o grande romancista, dramaturgo e poeta brasileiro do século XIX, nascido em 28 de março de 1812, em Cabo Frio, no Estado do Rio de Janeiro, Antonio Gonsalves Teixeira e Sousa (1812-1861), mais conhecido por Teixeira e Sousa, “retorna à vida” por intermédio de sua arte, que ficou em estado de brasa por mais de um século e que, para o desfrute nosso, ressurge como fogo que acalenta nossas almas e aconchega e amplia nosso imaginário, conhecimento e vocabulário, pela inciativa e mãos do editor e escritor Dennys Andrade, quem nos resgata a grande obra poética épica “A Independência do Brasil”, que consumiu oito anos da vida do poeta Teixeira e Sousa até sua conclusão em 1855.
Teixeira e Sousa, filho de um comerciante, carpinteiro e construtor de barcos português, Manuel Gonçalves, e de uma filha de escravos, Ana Teixeira de Jesus, ficou órfão muito cedo e, teve de abandonar os estudos aos dez anos para trabalhar no ofício paterno como aprendiz de carpinteiro, em Niterói. Aos treze anos, em 1825, muda-se para o Rio de Janeiro para aprimorar-se em sua profissão. Aos 18 anos, tuberculoso, retorna à sua cidade natal, Cabo Frio, para se recuperar, e é neste período que ele começa sua carreira artística literária com a tragédia “Cornélia”, que viria a ser publicada apenas em 1840. Dois anos depois, em 1832, retorna ao Rio de Janeiro para trabalhar como tipógrafo para Francisco de Paula Brito (1809-1861), que era o responsável pelo periódico “A Marmota Fluminense” e que se tornou um grande amigo do escritor. A partir desta simbiose, o primeiro romance escrito por um brasileiro, “O Filho de Pescador”, foi publicado em folhetins por Paula Brito, em 1843. Por esta obra, Teixeira e Sousa é considerado o precursor do Romantismo na Literatura Brasileira.
É na década de 1840 que a carreira poética de Teixeira e Sousa deslancha. Em preparação para seu longo poema “Independência do Brasil”, ele publica “Cantos Líricos I”, em 1841; “Cantos Líricos II”, em 1842; “Os Três Dias de um Noivado”, em 1844; e, finalmente “A Independência do Brasil”, iniciado em 1847 e somente finalizado em 1855. Entre 1849 e 1855, o poeta e romancista trabalha como professor público de instrução primária e também dirige uma tipografia. Publica, em livro, o romance “A Providência”, em 1854, que havia apenas circulado em formato de folhetim nas páginas do jornal “Correio Mercantil”. Em 1855 assume o posto de escrivão da Primeira Vara de Juízo da Cidade do Rio de Janeiro, publicando a tragédia “O Cavaleiro Teutônico ou a Freira de Marienburg” e o romance “As Fatalidades de Dois Jovens: Recordação dos Tempos Coloniais”, no ano seguinte. Em 1859, o escritor nos brinda com o seu último livro, o romance “Maria ou a Menina Roubada”. Dois anos depois, após uma infecção pulmonar que recaiu sobre um homem que já havia sido vítima de tuberculose na adolescência, Teixeira e Sousa morre no Rio de Janeiro, em 1º de dezembro de 1861.
“Escrevo para agradar-vos; junto aos meus escritos o quanto passo de moral, para que vos sejam úteis; junto-lhes as belezas da literatura, para que vos deleitem. Não corrijo este meu escrito, porque essa honra vós lhes fareis!”
— Teixeira e Sousa
O fogo e luz da obra “A Independência do Brasil” que se reacende por este livro, não só nos acalenta como também ilumina um grande pilar da nossa História e, de forma circunstancialmente régia, neste ano especial, em 2022: quando comemoramos o Bicentenário da Independência do Brasil, quando naquele valoroso sétimo dia de setembro de 1822, o país se agigantava e tomava suas rédeas, no controle de seu próprio reino que já nascia com a grandeza de um Império: o maior de toda as Américas.
Esta fantástica e erudita obra — resgatada pela Editora BKCC que, destarte, ratifica neste livro o fenômeno de resiliência artística citado acima, dando prova da sua força atemporal — é um poema épico de grande monta: um histórico (pincelado com símbolos míticos e abordagens teológicas, com direito a descidas ao Inferno tal qual Enéias e Dante fizeram, com o Demônio da Discórdia e seus comparsas atazanando o país em ebulição, mas também com as Ordens Celestiais e Exércitos de Deus agindo para nos protegerem e nos ajudarem) relato da nossa própria independência, espalhado em doze cantos, compostos em oitavas camonianas, de versos decassílabos heroicos no famoso esquema ABABABCC, que, por ele, se permite renovar o fenômeno de ressurgimento existencial de Teixeira e Sousa, em obra que exalta e honra tanto a arte do grande poeta português, Luís de Camões (c.1524-c.1579) quanto a nossa própria e tão relegada História da Independência e o período mais glorioso deste país: o de nossa Monarquia (1822-1889).
O poeta inicia sua obra — em certa medida mítica, em grande medida histórica, e permeada de símbolos cristãos — inflamado pelo Anjo da Glória e invocando a inspiração ao Anjo da Poesia (em invés de uma das nove Musas, filhas da deusa Mnemósine, como era comum serem invocadas para inspiração em muitas artes, como na poesia épica que é regida pela Calíope, em vários períodos e estilo), pois o poeta revela que não precisa mais desses deuses pagãos para cantar os feitos de nossos heróis e a grandeza da nossa Independência, pois já tem o Deus cristão e uma plêiade de Anjos e, como premissa, elege a Musa da Liberdade, o Anjo da Liberdade, como um símbolo da Musa do Brasil, o Anjo do Brasil, independência e liberdade a serem espalhadas pelo Anjo da Poesia. E, a partir desta declaração, ele principia a sua aclamação e narrativa dedicando seu esforço ao então (1855) Imperador do Brasil, D. Pedro II (1825-1891). E destarte, misturando personagens históricos e ficcionais com fatos, símbolos e mitos, ele conta as aventuras, eventos, conflitos e feitos dos anos que antecederam a Independência, como a Revolução Francesa e a chegada da Família Imperial ao Brasil, passando pelas principais vicissitudes que culminam no Brado do Ipiranga, até alguns anos após este marco brasileiro e, quiçá mundial, que é mister recuperarmos em nossa memória, com o foco epopeico no novo herói D. Pedro I (1798-1834), certamente um dos nossos Pais Fundadores.
Além de uma portentosa obra poética, com inúmeras referências mitológicas, bíblicas, artísticas, geográficas, climáticas, o poema “A Independência do Brasil” do Teixeira e Sousa trata-se de um belíssimo documento histórico que nos ajuda a entender as pessoas e seus papéis naqueles anos, lugares e acontecimentos, bem como parte do espírito, das motivações, das opiniões, do ânimo da época e dos sentimentos tanto do povo em geral como dos partícipes cruciais, protagonistas e antagonistas, maiores e menores, reais ou ficcionais, possíveis ou fantásticos, na época da Independência do Brasil, que se dá, como tudo o que acontece entre os homens, nos dois planos existenciais: o Espiritual e o Terreno, muito bem apresentados pelo poeta, bem como os inúmeros acontecimentos no Brasil e fora, acima e abaixo, grandes e já conhecidos ou pequenos e passados desapercebidos pela historiografia disponível, que aqui nos ajuda a ampliar e muito o nosso imaginário sobre este marco histórico que deve ser elevado ao seu devido patamar de importância em nossa cultura e existência.
E que este ressurgimento do memorável Teixeira e Sousa, por uma das suas muitas filhas da Sexta Arte, a mais dignamente humana e a mais hereditariamente divina, na beleza e realeza do poema “A Independência do Brasil”, seja para iluminá-lo por reflexão de seu próprio fogo coruscante sobre nós, rememorando e reavendo nossa identidade e grandeza por sua claridade acalentadora, derretendo nossas ignorâncias, esquentando nossas almas, e reluzindo nossas ideias por muitas e frutíferas gerações.